Por Guilherme Coelho e Francisco Gaetani

Publicado em 21 de setembro de 2020 no jornal O Estado de São Paulo.

Deixa comigo que eu não resolvo”, no jargão brasiliense, designa os comportamentos de veto de atores institucionais para preservar seu poder. Nosso país tem entre suas especialidades a de diluir responsabilidades ou camuflar problemas. Esse traço da nossa cultura administrativa se soma à inibição no enfrentamento dos obstáculos ao desenvolvimento sustentável. É nesse contexto, eclipsado pela pancadaria política, que uma extraordinária janela de oportunidade se abriu: o governo federal enviou ao Congresso Nacional a sua proposta de reforma administrativa.

Custou, mas rolou. É difícil discernir as motivações para o governo não ter feito isso antes. Uma delas se destaca: muitos ingredientes da reforma só poderiam ser discutidos se a iniciativa fosse do Executivo. A “prerrogativa da iniciativa” impedia que o Legislativo tomasse atitude em relação a algumas das principais questões a serem tratadas. Esse obstáculo não existe mais.

A hora e a vez são do Poder Legislativo, de cuja reabilitação o Brasil depende para sair da crise. Somente a política pode restaurar a saúde da democracia brasileira, pois está nas mãos dos legisladores uma das agendas estruturantes do País. Naturalmente há outros temas importantes: a reforma tributária, a reforma política, a revisão do pacto federativo e outros. Se a cada dois anos o Brasil se desincumbir de uma dessas reformas, pavimentará a retomada virtuosa do crescimento.

Reformas administrativas são necessidade permanente nas democracias contemporâneas, por duas razões simples: as realidades mudam e as preferências da sociedade, também. As ferramentas administrativas dos países precisam acompanhar ambas, do jeito que for possível.

O escopo de uma reforma administrativa pode ser mais ou menos abrangente. Em geral inclui pelo menos a atualização dos marcos jurídicos do serviço público e das estruturas organizacionais de funcionamento da administração pública. Pode ou não incluir questões relacionadas aos Poderes da República, às regras de compras e contratos, a processos orçamentários e financeiros, a procedimentos de auditoria e controle, etc. Quanto mais temas se ambiciona tratar, mais complexos ficam a negociação e o processamento dos conflitos. Essa calibragem fará parte das discussões nos próximos meses.

Ao enviarem ao Congresso sua proposta, a Presidência da República e o Ministério da Economia não apenas desinterditaram o debate, como demonstraram disposição para, juntamente com a sociedade e o Legislativo, reformar o arcabouço institucional brasileiro, de modo a que se ajuste às necessidades do País real.

O presidente da Câmara dos Deputados recepcionou a proposta, reconhecendo a importância e a urgência. Demonstrou disposição para processar a tramitação ainda em seu mandato. Quatro frentes parlamentares já trabalham sobre outras propostas para transformar o Estado brasileiro. A mídia, as redes sociais, os formadores de opinião, o mundo acadêmico e a comunidade de profissionais da esfera pública também têm amadurecido o debate de várias dessas questões, por duas décadas pelo menos.

A bola está com o Congresso. Este é o momento de fazer política. Esta é uma oportunidade extraordinária para se debaterem as políticas de gestão pública. O País deve a si mesmo essa conversa. Os decisores sãos os políticos que nos representam. O momento é de proposição, discussão, negociação e decisão. Não podemos desqualificar nem desperdiçar esta chance.

Governos importam. Talvez poucas vezes tenham importado tanto como nesta conjuntura de crises entrelaçadas, como a econômica, a política e a de saúde pública. Para que os governos funcionem precisam desembaraçar-se de normas disfuncionais que tornam a administração pública impossível.

Não podemos ser eternamente o país que cria dificuldades para vender facilidades. Nossos cidadãos e nossas empresas estão exauridos pelo esforço cotidiano de tocarem a vida e os negócios. O País precisa desbloquear seu capital criativo para se desenvolver. Cabe ao Congresso aproveitar a oportunidade e à sociedade, auxiliá-lo.

O Brasil precisa virar a chave da política, assumindo o país que é. Não somos escandinavos, orientais, anglo-saxões, mediterrâneos, eslavos, hispânicos, árabes, africanos, embora muitos de nós sejamos descendentes de outros povos e etnias. Somos o que somos: brasileiros. Precisamos sair de comportamentos tóxicos como o fatalismo, o catastrofismo, o ufanismo, o imediatismo, o oportunismo e o autoengano.

É hora de o País assumir suas responsabilidades históricas. Elas são nacionais e intransferíveis. Reformas administrativas são o primeiro passo para um novo Brasil.

Ver artigo original https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,reforma-administrativa-o-congresso-na-cara-do-gol,70003445592

Fotografia: Edilson Rodrigues/Agência Senado