Por Guilherme Coelho e Francisco Gaetani

Publicado em 10 de setembro de 2020 no jornal Folha de S. Paulo.

 Em 1977, Mierle Ukeles tinha 38 anos, um mestrado, um manifesto artístico e três filhos, mas foi ao se convidar para ser artista residente no Departamento de Limpeza Urbana da cidade de Nova York que ela inscreveu seu nome na história da arte. A prefeitura topou, e ela ganhou uma pequena sala e nenhum salário.

Até hoje, aos 81 anos, ela mantém o cargo inventado. Sua obra artística foi recentemente incorporada à coleção do Smithsonian, na capital dos Estados Unidos, e é construída em torno do conceito de arte de manutenção. Por meio dele, Ukeles relaciona o processo artístico com ocupações essenciais, porém pouco valorizadas, como o trabalho de mulheres em suas próprias casas e algumas profissões no setor público.

A partir de 1975, Nova York viveu uma grave crise fiscal, agravada pela debandada de moradores mais ricos para os subúrbios. Em 1977, houve dois apagões históricos e, em seguida, a cidade passou por uma crise de segurança pública que marcou a década de 1980. Mierle Ukeles era a artista certa no lugar certo.

Sua primeira intervenção como artista residente no serviço público foi encontrar individualmente com os 8.500 profissionais responsáveis pela coleta de lixo da cidade —e filmar. Ela apertava suas mãos e lhes agradecia, dizendo: “Obrigada por manter Nova York viva”. O processo levou 11 meses e aconteceu nas ruas da cidade, durante o trabalho desses profissionais.

Essa performance fala muito sobre perfomance. Não sobre o suporte artístico em si, mas sobre “performance”, em inglês, significando desempenho. E desempenho, entrega e efetividade são os objetivos finais na gestão, pública ou privada.

Ukeles investiu capital simbólico, “deu moral” e agradeceu a quem, em sua visão, merecia. Ela usou reconhecimento, que era sua única ferramenta disponível e, muitas vezes, o melhor instrumento para motivar pessoas no trabalho. Por vezes, reconhecimento é até mais efetivo que bonificações em dinheiro,segundo um estudo da McKinsey de 2009 .

Aqui no Brasil, as artes podem ter o papel de ressignificar a conversa pública sobre o Estado. Há dois anos, acontece a Residência Artística do Setor Público (RASP), inspirada em uma iniciativa da Prefeitura de Nova York que, em 2015, institucionalizou o processo inaugurado por Ukeles 40 anos antes.

O programa brasileiro propõe que artistas se dediquem, por meio de sua arte, a órgãos públicos por um período de 18 meses. Tatiana Altberg trabalhou com uma equipe da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro; Cadu com professores de teatro na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro; Daniel Lima está atualmente desenvolvendo um trabalho na 2ª Vara da Infância e da Juventude de São Paulo, e Eleonora Fabião em breve colaborará transversalmente com órgãos da Prefeitura do Rio de Janeiro.

A arte dessa turma poderá deslocar nosso olhar para o Estado e abrir nossa cabeça.

O momento não poderia ser melhor. Em meio à Covid-19, olhamos apreensivos para prováveis mudanças significativas nas relações entre Estado, sociedade e economia. O assunto reforma administrativa voltou à baila. Embora o termo reforma não seja o melhor, dada sua conotação ideológica, tal esforço deveria ser uma agenda permanente de melhoramento do Estado, com participação de uma população atenta.

O assunto é tão potente que merece algo como uma frente ampla por um Estado efetivo. As necessidades são evidentes e urgentes, e as partes interessadas somos todas nós. Temos a chance, a obrigação e a responsabilidade de realizar uma transformação social no nosso país por meio da atualização do Estado brasileiro. Devemos ser ambiciosos e otimistas.

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