Por Denise Dora Artigo 19, Mari Stockler 342Artes, Conrado Hübner Mendes Colunista da Folha e Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo), Marcelo Chilvarquer Rede Liberdade, Celso Curi Movimento Artigo Quinto, Marielle Ramires Fora do Eixo, Guilherme Coelho Samambaia Filantropias

Publicado em 22 de Setembro de 2021 no jornal A Folha de São Paulo

A cultura brasileira está reagindo a uma escalada autoritária sem precedentes neste século 21. Nos últimos dois anos, contabilizamos nada menos que 130 casos de censura às expressões artísticas, autoritarismo contra a cultura e desmonte institucional do setor. Foram 94 episódios entre 2019 e 2020 e 35 só no primeiro semestre deste ano.

Mapear os episódios de cerceamento à liberdade de expressão artística e de ofensiva contra o campo da cultura é imprescindível para essa reação. Identificar os principais segmentos vitimados pelos atos censores e autoritários, os “novos” mecanismos de violação, os tipos de manifestação autoritária e suas motivações —tudo isso compõe o Mapa da Censura no Brasil, essencial para compreender a real dimensão desse fenômeno.

Mas é preciso ir além. É preciso amparar e responder à altura. Vamos acolher as denúncias dos artistas, produtores e gestores culturais, analisá-las técnica e juridicamente, orientar esses profissionais sobre seus direitos e oferecer-lhes instrumentos concretos de reação ao abuso sistemático que vêm sofrendo. O objetivo é criar condições reais para que a liberdade de expressão artística, individual e coletiva seja garantida.

Esse é o trabalho do Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), uma ação do Artigo 19 e 342Artes, em parceria com Laut, Rede Liberdade, Movimento Artigo Quinto, Mídia Ninja e provocação e articulação da Samambaia Filantropias.

O Mobile nasceu da convicção de que não podemos nos calar diante do quadro crescente de censura e autoritarismo, promovido por autoridades e operadores simpatizantes de extremismos, numa situação que afronta princípios democráticos e do Estado de Direito.

Num país de longa tradição de violações de direitos humanos e liberdades, instaurou-se uma ordem ainda mais grave a partir de 2018, quando Jair Bolsonaro elegeu a cultura como inimiga moral de seu governo.

O resultado tem sido uma sequência de episódios cada vez mais extensos e intensos. Fechamentos de exposições e cancelamentos de shows, mostras, performances e festivais sob alegações obscurantistas. Ameaças a artistas e instituições culturais. Ordens judiciais de censura prévia.

Destruição de terreiros religiosos. Perseguição político-ideológica a quem pensa diferente. Tentativas de controle ideológico dos segmentos culturais. Ataques a manifestações artísticas, a posicionamentos estéticos ou a conteúdos relacionados à orientação sexual, de gênero e de raça.

Estrangulamento financeiro e supressão de políticas públicas de fomento. Aparelhamento ideológico das instituições culturais. Dissolução da memória e do patrimônio.

Em março deste ano, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, incitou boicote a “Medida Provisória”, filme dirigido por Lázaro Ramos que trata de pedido de reparação da população negra pelo período da escravidão. Em julho, o secretário especial da Cultura, Mario Friasao criticar o uso do pronome neutro “todes” em postagem do Museu da Língua Portuguesa, ameaçou cortar verba do governo federal nas obras da instituição. Em 2019, o Centro Cultural Banco do Brasil cancelou unilateralmente a peça teatral “Caranguejo Overdrive” pelo conteúdo politizado.

Como esses, dezenas de casos expõem um quadro de perseguição aos artistas e um processo de instrumentalização de órgãos e instituições culturais públicos, que resulta no descompromisso com a manutenção de equipamentos —cujo exemplo mais recente foi o incêndio de um galpão da Cinemateca Brasileira, parte do roteiro de como destruir o futuro do país a partir do descaso com sua memória.

O Mobile nasceu para resistir. Resistir e conscientizar a sociedade dos riscos em curso. Conscientizar e trabalhar para promover os direitos culturais e artísticos. Porque o Mobile é um movimento coletivo que acolhe, analisa e orienta casos de censura ou intimidação à arte, à cultura e aos artistas; que reforça o direito constitucional de liberdade da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, e de veto a toda e qualquer censura; que alerta, inspira e dá publicidade às denúncias de artistas e agentes culturais de todo o país.

Ver publicação original
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/09/a-cultura-como-inimiga.shtml