Por Guilherme Coelho 

Publicado em 22 de agosto de 2021 no jornal O Globo

Já passou da hora de o país realmente profissionalizar seus quadros militares, para que sejam forças a serviço do Estado e de toda a população, e não de um governo transitório. Enquanto isso não acontece, a todo momento presenciamos vexames, como o recente passeio de veículos militares em Brasília ou a legitimação do Alto-Comando do Exército à ida do general Eduardo Pazuello a um comício no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Rio. As Forças Armadas têm enormes oportunidades para contribuir para nossa vida e, de fato, orgulhar a Família Militar.

A profissionalização militar é um desafio da contemporaneidade que muitos países encararam e superaram. No Brasil, é um debate sempre adiado. O último movimento de modernização foi em 1999, com a criação do Ministério da Defesa e a extinção dos ministérios de Exército, Marinha e Aeronáutica. Não houve progresso de lá para cá, principalmente na formação dos militares. Isso ajuda a explicar os abalos constantes à estabilidade do país e à tranquilidade dos brasileiros.

Fiz reflexões semelhantes em 2008, ao escrever um artigo sobre o documentário “PQD”, que dirigi em 2005, retratando a formação de jovens na Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército. A partir da constatação do importante papel social das Forças Armadas para acolher e preparar garotos de estratos carentes da população, o artigo questionava a necessidade de rever a qualidade desse período de aprendizado.

A formação precária dos militares é a lacuna que nos faz enxergar no presente os fantasmas do passado. Não há uma semana em que o país não seja acossado pelo temor de que as Forças Armadas obstruam o curso da vida democrática. Convivemos com advertências descabidas de oficiais à sociedade, à Justiça ou ao Legislativo, como se tivessem mandato para tal.

O fato de um militar graduado não enxergar barreiras institucionais para suas manifestações políticas é prova inequívoca de que algo está errado em sua formação. Essa deficiência é o que os leva a relativizar o respeito às leis, legitimar o revisionismo histórico, elogiar torturadores, colocar a farda a serviço de candidaturas, ocupar quadros que deveriam ser de técnicos, ameaçar os Poderes Constitucionais e negar a ciência.

A eficiência das Forças Armadas é estratégica para um país com dez fronteiras terrestres e 8 mil quilômetros de litoral, que demandam apoio à população, proteção do território e das riquezas nacionais. Exatamente por terem missão tão importante é que não se pode admitir que cargos e benesses desviem militares para a tentação de regular a vida política.

Nesse debate, torna-se inevitável enfrentar questões como a diversidade racial nos cargos de alto-comando e o serviço militar obrigatório, para ficar em exemplos rápidos. Nossas Forças Armadas devem se conectar com os esforços de seu povo para corrigir injustiças que o mantêm preso a séculos passados, para promover a ascensão das mulheres aos espaços de poder e para respeitar as orientações sexuais das cidadãs e cidadãos LGBTQIAP+. É o que fazem as nações que admiramos e que atuam para melhorar a qualidade de vida de seus povos.

Os militares brasileiros precisam resgatar o compromisso com a democracia, o mesmo que levou nossos soldados a perder a vida no combate ao fascismo na Segunda Guerra Mundial. Esse é o significado do monumento militar que o general e o capitão reformado profanaram no Rio de Janeiro. A reafirmação do preceito histórico das Forças Armadas dependerá de nossa capacidade de trazê-las para o século XXI e para a missão de construir um país mais justo para os brasileiros. Como neto de militar e filho de recruta do Forte de Copacabana, esta é uma luta amada.

 

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