Por Guilherme Coelho

Artigo publicado no Caderno B do Jornal do Brasil, ao lançamento do filme “Jogo de Cena” em 2005.

“Viemos à Paraíba, pra tentar fazer um filme sem nenhum tipo de pesquisa prévia, nenhum tema em particular, nenhuma locação em particular. Queremos achar uma comunidade rural de que a gente goste e que nos aceite.” Esse é o ponto de partida do novo filme de Eduardo Coutinho. 

Nem uma exploração de relatos religiosos (Santo Forte, 1999), nem sonhos e apreensões sobre o novo milênio (Babilônia 2000), nem um encontro com a classe média em Copacabana (Edifício Master, 2002), O Fim e O Princípio são todos estes filmes juntos no que eles têm de mais importante. Como diz o diretor logo no começo do filme, “nós queremos ouvir histórias.”  

Na verdade, este filme é a radicalização da proposta coutiniana de encontrar com o Brasil como ele se apresenta. A partir desta proposta o critico americano Robert Stam cunhou a bela expressão “uma dramaturgia do gesto e da fala.”  

Em O Fim e o Princípio Coutinho se aprofunda na (boa) metalinguagem, fazendo um filme sobre a construção de um filme em busca de histórias de pessoas comuns num canto remoto do Brasil. Além dos gestos e falas (algumas a serem decifradas pelo espectador), soma-se a esse filme uma presença ainda maior do diretor, que pode ser visto como o mais importante personagem do filme. 

Nos primeiros minutos vemos Coutinho explicando a uma entrevistada o método do filme. Esta mulher, Rosa, se tornará a ótima mediadora entre Coutinho e os moradores, levando a equipe de casa em casa e explicando ela mesmo as intenções daquele grupo estranho. 

Aos poucos Coutinho vai deixando de ser apenas um bom ouvinte para se tornar um entrevistado também. É interessantíssimo quando a equipe retorna a casa de Leocádio e este interroga o diretor:

Leocádio: O senhor crê em Deus?

Coutinho: Eu… É complicado isso, né?

Leocádio: Ou o senhor acha que crer em Deus é ilusão? 

Coutinho: Não, não acho.

Leocádio: Existirá Deus no céu?

Coutinho: Acho que seria bom…mas não sei, queria saber. 

Esse “encontro” acontece todo na maior sinceridade, desnudando o abismo entre a equipe e o personagem, ao mesmo tempo que os une. A uma região esquecida, com um povo de vocabulário complicado e belo, que cita o profeta Daniel, recita poemas, reza sem cobrar, uma equipe de filmagem chega, é aceita e nos relata esse encontro. Mas o mais importante é como vemos estes moradores da pequena São João do Rio do Peixe. Em nenhum momento sentimos pena, pensamos que são ingênuos, os idealizamos ou rimos das pessoas que a equipe encontra. (Rimos com elas, mas não delas.) 

No país dos abusos, do paternalismo e do descaso, o compromisso com a dignidade do retratado e o respeito pelo relato de cada um, explicam por si só a importância da obra do diretor. Sem o dinheiro e a fantasia da ficção, acossado pela reality tv, o documentário parece sobreviver somente para o desafio de como tratar seus personagens, que ao contrário do que ocorre na ficção, são gente de verdade. Este posicionamento ético, central em filmes como O Fim e o Princípio, pode ser a maior razão para se fazer documentários no Brasil.