Por Guilherme Coelho

Foi num dia especial, dia 18 de maio, num subúrbio da cidade de Yokohama, ao sul de Tóquio. Foi nesse dia, parafraseando o Dapieve, que usando uma saia amarela num estúdio de dança, que eu comecei a amar o Japão.

Era uma aula de butô, a dança-teatro japonesa. O professor era Yoshito Ohno, filho do grande Kazuo Ohno. Fazia calor num dia claro, e das ladeiras e vielas por onde passávamos era possível (e inesquecível) ver o Monte Fuji.

Construído com tábuas de demolição doadas por uma escola batista, o estúdio de dança de família Ohno fica, desde 1961, no quintal da casa onde hoje mora Yoshito. A casa que era de seu pai, seu parceiro de uma vida no palco.

Kazuo Ohno (1906-2010) foi a maior expressão do butô, e um dos mais celebrados dançarinos do século XX. Uma interessante janela para o seu pensamento está no livro “Kazuo Ohno, Treino e(m) poema”, lançado este ano pela n-1 edições, reunindo seus aforismos e dois bons prefácios.

Filiado ao Expressionismo, o butô nasceu oficialmente num espetáculo na primavera de 1959 – sem Kazuo, mas com Yoshito no palco. É fruto de uma sociedade fraturada. Duas bombas atômicas aterraram cem anos de imperialismo regional, genocídios e atrocidades cometida pelos japoneses contra outros povos na Ásia. Antes disso, e em preparação para tamanha violência e consequência marcial, o Japão viveu mais de 600 anos sob ditaduras militares feudais – a era dos Xoguns.

Intimamente individual, o butô talvez não possa ser classificado como um gênero, e podemos apenas falar que existem dançarinos de butô. O butô de Kazuo Ohno versava sobre a sombra – sobre as sombras de quem dança, e também de quem assiste. Uma tentativa, torta e tortuosa, de revelar as divisões dentro do indivíduo – dentro de todos nós. O que há de escuro e escuso. Um elogio das sombras e, assim também, da luz. Celebrando individualidade e diferença.

O butô de Kazuo Ohno é um mergulho no “ma”. Conceito fundamental à cultura japonesa, o “ma” pode ser traduzido como vazio, silêncio, minimalismo. Segundo Lígia Verdi, aluna de Kazuo neste mesmo estúdio entre 1987 e 1990, somos chamados a submergir neste vazio. Pois “o espaço vazio é um espaço cheio” de quereres. Uma ausência que cria o desejo.

Durante décadas, Kazuo Ohno deu oficinas de butô abertas ao público, duas vezes por semana, às terças à noite e aos domingos à tarde. Hoje, seu herdeiro mantém a tradição, e naquela tarde de maio Yoshito nos conduzia a uma busca “do pequeno, do interior”. Nos mandava explorar o espaço daquela sala e assim descobrir nosso corpo, nossa nave. Um exercício foi exprimir diferentes sentimentos através de “micro-movimentos”: torcendo um pedaço simples de seda, e depois um chumaço de algodão. Maleabilidade, resistência. Subjetividade. Só o eu existe. A música “The spirit was gone” tocava no som portátil. Quando puder, procure no You Tube: “Kazuo Ohno + Antony and the Johnsons”, e se emocione também.

Dança, como o cinema, é sobre singularidade. Sobre movimentos que nos revelem, que sejam só nossos, e que nos fundem. Naquela tarde carregávamos objetos imaginários que só nós sabíamos. Um bebê; uma bola; água. Me senti sozinho num espaço por onde já haviam passado tantos alunos – e Pina Baush e Peter Brook. Minha fronte tesa, auto-consciente. Meu corpo com o qual até hoje não me encontro. O cheiro dos armários lotados com figurinos de Kazuo e Yoshito. Suas malas de viagem. Um passado.

O presente. A recente visita do Obama à Hiroshima muito provavelmente significará a volta do Japão a um Estado “normal”. Neste caso, infelizmente, um país capaz de ter um exército pra valer e de vender armas de guerra. O objetivo, e necessidade, do primeiro ministro Shinzo Abe talvez seja impulsionar o setor de tecnologia do país, o que pode dar certo. Basta ver a importância da indústria da guerra dos EUA para a história do Vale do Silício.

No início de julho, o partido conservador de Abe conquistou mais de dois terços dos assentos no Diet, o congresso japonês. Com isso, eles poderão revogar a “cláusula pacifista” da constituição de 1947, imposta pela general estadunidense MacArthur, que então ocupava o país arrasado. Os EUA – e o mundo – talvez precisem de mais uma democracia armada ao lado da Coreia do Norte e da China, além da Coreia do Sul.

Mas devemos estar atentos e torcer para que isso não transforme de novo o povo japonês. E que a Ásia não volte a ser uma região de sombra, de agressores. De uma sociedade fraturada, foi no Japão de hoje que conheci as pessoas mais gentis, responsáveis e atentas ao outro. E o butô os fez assim.

(Artigo publicado na Revista comemorativa do restaurante Sushi Leblon, em dezembro de 2016). Imagem: Fabio Yoshihito Matsuura