Por Guilherme Coelho

Publicado no O Globo em 13 de Outubro de 2012.

Em meio à votação do mensalão e aos resultados das eleições municipais, inicia-se agora uma campanha que vai dar o que falar até o carnaval. Um grupo liderado pela ONG Viva Rio se organiza para colher um milhão de assinaturas e colocar em votação no Congresso uma revisão da legislação das drogas no Brasil. 

Originalmente vista como progressista, a lei 11.343 de 2006 prevê que usuários de qualquer droga recebam penas alternativas, como multa, advertência ou trabalho comunitário, através dos Tribunais Especiais Criminais. 

Mas a lei não pegou direito. Por não determinar as quantidades que diferenciam o usuário do traficante, o resultado é que cinco anos depois o número de prisões por “associação ao tráfico” duplicou. O que se argumenta agora é que esta não é uma boa estatística.

Em 2006 foram 62 mil prisões por associação ao tráfico no Brasil. Em 2011 foram 125 mil. Com a responsabilidade de “tipificar” quem é usuário e quem é traficante, policiais e juízes rapidamente encontraram um atalho reforçando desigualdades: quem é rico é usuário; quem é pobre é traficante. 

Este é o principal argumento da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD). Liderada pelo médico Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, o grupo tem entre seus membros Drauzio Varela, Edmar Bacha, Ellen Gracie, Pedro Moreira Salles e Zuenir Ventura. Articulada com a campanha do Viva Rio, eles defendem que, além de desigual, a legislação de 2006 priva de oportunidades uma quantidade significativa de jovens. E este fato se torna ainda mais grave numa situação de pleno emprego como vivemos hoje no Brasil, quando necessitamos de novos talentos entrando no mercado de trabalho ou se qualificando. 

Em recente evento em São Paulo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no papel de presidente da Comissão Global de Política sobre Drogas, relatou suas conversas com líderes latino-americanos e europeus sobre o tema. E revelou a disposição de muitos deles em regulamentar o consumo de entorpecentes – face ao consenso de que a “guerra” contra as drogas fracassou. 

O encontro era o lançamento da rede “Pense Livre, por uma política de drogas que funcione”, que reúne 65 jovens e tem como objetivo promover um amplo debate sobre política de drogas no Brasil. O grupo reúne juristas, médicos, jornalistas e cineastas que querem exercitar o ativismo político através do blog do grupo,  www.oesquema.com.br/penselivre , além de organizar encontros com lideranças políticas e setores da sociedade civil.

O que é mais interessante no debate atual é que desta vez ele vai além da apologia ou não sobre o uso de drogas. Nesta discussão cabe até ser contra o consumo (e sua apologia), mas a favor da descriminalização como melhor solução de política pública. Não é mais uma questão de liberdade individual, mas sim um debate enquadrado pelo utilitarismo, onde se questiona como melhor gerir recursos (populacional, criminal e de saúde) num ambiente onde o consumo de drogas é um fato. 

É não um fato banal. No mais recente Relatório Nacional de Álcool e Drogas, elaborado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), descobrimos que o Brasil é o 2o maior consumidor de cocaína e derivados no mundo. Estima-se que 2,2 milhões de brasileiros usaram alguma destas drogas nos últimos doze meses. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil fica atrás apenas dos EUA (4,1 milhões de usuários nos últimos doze meses) e está à frente da Inglaterra (1,1 milhão de usuários). Com relação à maconha, 1,8 milhão de brasileiros fazem uso diário da droga. Isto é, 1% da população fuma maconha todos dos dias da semana.

Uma estatística citada no encontro da rede Pense Livre é que entre 10 e 15% de usuários de drogas se tornam dependentes químicos e/ou fazem uso abusivo e danoso destas substâncias. Claro que isso depende do tipo de droga consumida, e revela um desafio ainda não endereçado: como diferenciar e regulamentar diferentes drogas. Crack, MDMA e maconha são praias distintas. Por isso, é necessário mais pesquisa científica –  mas o ambiente proibicionista coíbe. 

O que estes grupos estão propondo é que, ao contrário do que podemos achar, o melhor caminho não é banir, mas sim controlar o consumo e a qualidade das drogas. Um argumento central da rede Pense Livre é que a atual política de repressão causa ainda mais danos que o consumo de drogas em si.

Uma recente pesquisa inglesa realizada por Ari Rosmar e Niamh Eastwood em 21 países que descriminalizaram o consumo de maconha confirma: não houve aumento no consumo da droga. Este é um dado central para os defensores da descriminalização do consumo e/ou da legalização da venda – como ocorrido recentemente no Uruguai.

Com pesar, a equipe do Viva Rio admite que a área médica ainda hesita em apoiar uma revisão da legislação. Isto é compreensível dado o mandato de médicos e agentes de saúde: a preservação da vida e maximização da saúde. Pesquisas acerca do consumo de drogas em grande maioria revelam seus efeitos negativos. 

Uma pesquisa da Universidade de Duke concluída este ano na Nova Zelândia mostrou que aqueles que começam a fumar maconha antes do dezoito anos de idade tem uma redução em até 8 pontos no QI quando chegam à meia idade – comparados àqueles que só começam a fumar depois da maioridade. Pode-se dar crédito ou não à medições de QI nos dias de hoje, mas deve-se atentar ao fato que, sendo vasoconstritor, a maconha reduz a circulação de sangue e oxigênio para o cérebro. Esta pesquisa mostra que este efeito é mais grave em idade mais jovem, quando o cérebro ainda está em formação. Estes e outros dados apenas ilustram o que é senso comum: o potencial lesivo do uso frequente de drogas. 

Médicos e cientistas são o próximo alvo da campanha de conscientização do Viva Rio e da CBDD. A saúde pública no Brasil não está preparada para atender o usuário que abusou de drogas, e nem para tratar um dependente químico crônico. É sintomático que não exista em hospitais públicos brasileiros um protocolo padrão para atendimento de pessoas sofrendo de overdose. Cada plantonista tem que se virar como achar melhor. 

Uma melhor regulamentação do tema, que faça com que o usuário de drogas tenha como porta de entrada o sistema de saúde e não o criminal, servirá também como oportunidade para o Brasil reformular suas políticas de segurança pública. 

E é justamente na polícia onde a discussão sobre drogas está mais avançada. Setores importantes das forças policiais são a favor da regulamentação da venda – que é um passo além da descriminalização do consumo. Como operadores do sistema de segurança, policiais antecipam o paradoxo que é ter o consumo regulado (descriminalização) e a venda proibida. Eles não querem ter que mediar isto, e têm razão. Por isso, muitos policiais defendem que a venda também seja regulamentada pelo estado. Alguns (entre estes, pelo menos um com posição de comando no Estado do Rio) chegam a argumentar que a venda deveria ser monopólio do Estado – como o Uruguai definiu. 

Muita água vai rolar até março, quando a campanha do Viva Rio pretende chegar ao Congresso. E vai ter correnteza. Uma pesquisa do Viva Rio revela o tamanho do desafio: 75% da população brasileira é contra tratar o uso de drogas como uma questão de saúde pública. No entanto, diferentemente da campanha pelo desarmamento, a oposição neste caso não é tão evidente ou organizada. 

O importante é que este debate está de volta, e está melhor. Apenas a apologia do consumo, em nome das liberdades individuais, é leviano e muitas vezes irresponsável. No entanto, é inútil negar que as drogas, lícitas e ilícitas, fazem parte da experiência humana desde sempre. Devemos compreendê-las como comportamento. E desenhar políticas públicas que ao invés de obscurecer a questão, de fato minimizem os danos de seu uso e abuso.