Por Guilherme Cezar Coelho

Publicado em 02 de outubro no Segundo Caderno

“A substância”, filme em cartaz estrelado por Demi Moore, está dando o que falar e pensar. O tema é a objetificação do feminino e suas torturas. A história é de uma mulher muito bonita que perde o trabalho devido à sua idade. Me lembrou outro filme, também em cartaz, e imperdível: “Fernanda Young — Foge-me ao controle”, de Susanna Lira, que arrasa. Filme bom para ver com a sua melhor amiga.

Antes de seguirmos, uma pausa para minha autodescrição: sou homem, branco, hétero (há quem duvide) e fui orientado a não me descrever como “desvirilizante” na bio das redes sociais. Soava como apropriação indevida. Acuado, apaguei.

Querendo ou não, todo homem hoje está em desconstrução. Seja por interesse intelectual, seja por medo de cancelamento, ou as duas coisas, todo homem está cada vez mais sujeito — querendo ou não — a discussões sobre representações da mulher e da masculinidade.

Eu mesmo, filho de uma cultura que, como modo padrão, objetifica as mulheres (mas não exclusivamente), por sorte acabei numa aula-espetáculo da Manuela Cantuária sobre o feminino no cinema. No Teatro Rival, fui com amigas. Recomendo.

Ao escrever um filme com Michel Laub e Josefina Trotta, aprendi sobre o Teste de Bechdel, que sugere medir a relevância de personagens femininos em enredos de filmes. São três perguntas. O filme tem ao menos duas personagens mulheres que têm nomes? Personagens mulheres conversam entre si durante o filme? E, se conversam, falam sobre algo que não é “homem“ ou “relacionamentos amorosos”?

“Fernanda Young” é um documentário, trata de tudo, e muito pouco de “homem” ou do longo casamento da escritora, atriz e apresentadora. Já “A substância” tem, sim, duas personagens com nomes (Lizzie e Sue), que mal se falam pois mal se encontram, apesar de estarem sempre disputando uma com a outra — por suas vidas. As duas têm 40 anos de diferença de idade e ambas são apresentadoras de programas de TV de malhação, tipo Jane Fonda.

O fato de serem a mesma mulher (numa ficção científica meio mal-ajambrada) nos remete a um quadro do programa “Os normais”, escrito por Fernanda Young e Alexandre Machado. Nele, Vani (Fernanda Torres) expõe para Rui (Luiz Fernando Guimarães) seus dilacerantes conflitos internos como mulher, vítima da síndrome de impostora e de expectativas impossíveis de serem cumpridas.

Em sua aula, Manuela Cantuária defende que num filme feminista (ou não machista) uma mulher, se for salva, deveria ser salva por uma outra mulher. Pois talvez só uma amiga possa realmente salvar uma mulher.

Não é o caso de “A substância”, em que as duas personagens são reféns uma da outra. Demi Moore só se dá mal, e ambas as personagens sucumbem ao terror; o terror da expectativa do outro sobre o seu próprio corpo. Na sequência final — um pastiche — as duas se amalgamam, numa tentativa do filme de fazer clara sua crítica, aderindo ao horror como linguagem. No meu entender, o filme não avança nas discussões que propõe, ainda que dirigido por uma mulher, a francesa Coralie Fargeat.

“A substância” chama atenção para temas quentes — centrais na contemporaneidade — sem trazer uma reflexão suficientemente aprofundada. Ao supostamente fazer uma crítica à vaidade, ao desejo de beleza eterna, o filme pratica, ele mesmo, uma extrema objetificação do corpo feminino, mostrando incansavelmente bundas e pepecas em collants. É paródia, é engraçado, mas perde a graça por não trazer nada de realmente novo.

Mulher que é um dínamo

Já “Fernanda Young — Foge-me ao controle” não é um filme sobre uma mulher que sucumbe (ao patriarcado, ou à dislexia), mas, sim, sobre uma mulher que se rebela. Uma mulher farol, punk, niteroiense, contrária, herdeira do Crepúsculo de Cubatão, a boate na Barata Ribeiro que marcou o Rio na segunda metade dos anos 1980.

Vendo o filme, compreendemos o quanto Fernanda Young foi um dínamo, inserindo, de maneira bem-sucedida e para públicos amplos, discussões sobre a representação e a condição feminina. E isso sem o orçamento, o rebolation e as meias polainas de “A substância” — e com muito mais jogo de cintura.

O filme, narrado pela própria Young e por Maria Ribeiro, tem uma primorosa edição de Ítalo Rocha, que levou o prêmio de melhor montagem no Festival É Tudo Verdade. Utiliza-se, como cinemão, de imagens do surrealismo e da década de 1930. Não por acaso. “Fernanda Young” nos faz lembrar (sem citar) Kiki de Montparnasse. Esta, também, símbolo de um feminino luminoso, audaz, que traz vida e liberta a todas e todos.

Para avançar na minha educação feminista (e no meu autocontrole, como machista) aguardo um filme da Manuela Cantuária escrito por Patrícia Andrade, dirigido por Gabi Gastal e produzido por Simone Oliveira, Tereza Gonzalez, Rapha Leite e Carol Rapp. Estrelando Ludmila Rosa e grande elenco.

Enquanto isso, me distraio na saída de “A substância” ao encontrar um amigo que tinha feito, naquela tarde, uma sessão de microagulhamento no rosto. Acho que vou fazer também, a tempo do Festival do Rio.

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https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/10/02/artigo-sou-muito-mais-fernanda-young.ghtml