Por Guilherme Coelho 

Publicado em 25 de outubro de 2022 no jornal A Folha de São Paulo

Numa sala no sexto andar de um prédio na Rua do Russel, no bairro da Glória, na cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Coutinho assistia a fitas VHS com gravações de depoimentos de Roberto Jefferson na CPI do Mensalão.
Interessado na retórica, na desfaçatez, no histrionismo e na combinação de camisa e gravata roxas do então deputado federal, Coutinho imaginou uma atriz fazendo o papel de Jefferson, repetindo as suas falas. Talvez Fernanda Montenegro. Talvez vestindo um terno roxo. Ali nasceu o documentário “Jogo de Cena”, de 2007, marco do
cinema brasileiro.
Domingo passado assistimos à mesma teatralidade e despudor de 2005, só que agora em versão armada. Numa série de vídeos, Jefferson narra serenamente a abordagem da Polícia Federal a sua casa, a troca de tiros com estes policiais, sem se esquecer de acrescentar suas tenebrosas razões para a cena de faroeste. Tudo isso usando óculos
de desenho animado.
É valioso analisar dois destes vídeos. Um antes da troca de tiros, o outro depois. Em ambos, apenas ouvimos Jefferson; em ambos, respiração e emissão de voz são idênticas. Ausentes estão o embaraço e a adrenalina. Sintoma de sociopatia? Não espantará se Jefferson pedir para ser considerado inimputável. De tropa de choque de Fernando Collor a franja radical da extrema direita, o percurso de Jefferson é espantoso e sintomático, pois descreve, com o exagero típico das
óperas, a trajetória menos bufante percorrida por parte não insignificante do país. Não falta sequer o elemento cristão. Jefferson agora se apóia em Jesus de Nazaré para justificar a sua delinqüência e tentativa de homicídio. Deixo para os historiadores e profissionais da alma decidir por onde passa a linha – se é que passa – que separa fanatismo mequetrefe de oportunismo calculista. De certeza mesmo, apenas o fato de que estes vídeos agora são parte da história brasileira.
Isso daria (e provavelmente dará) um filme.
Mas prefiro pensar o Brasil como pensou Beth Carvalho, tal qual revelado no ótimo filme “Andança”, de Pedro Bronz, com produção de Roberto Berliner. Recentemente lançado no Festival do Rio e agora na Mostra de São Paulo,
objeto de acolhida consagradora, o filme é um abraço que se dá no Brasil (ao invés de um tiro). Um Brasil que é mais “Paloma” — o doce e preciso filme de Marcelo Gomes, grande vencedor do Festival do Rio de 2022, também presente na Mostra.
Um Brasil não apenas mais alegre, mas também mais criativo. É o que queremos. Um cinema que questione velhas representações, que radicalize as suas formas, e, assim, que seja capaz de lançar a luz necessária para nos ajudar a sair desse buraco. “Sejamos otimistas, deixemos o pessimismo para tempos melhores.” Essa frase, das
mais lindas pichadas nos muros de Paris em maio de 1968, foi recentemente lembrada por João Salles, amigo e produtor de Coutinho. Nos serve bem.

Venceremos.

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https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/10/jogo-de-cena-da-morte.shtml